sexta-feira, 18 de abril de 2014

CRIATIVIDADE E ÓCIO


Durante algum tempo acreditei que o ócio é um grande amigo da criatividade, como dizem. Para compor uma música, fazer um soneto, escrever um romance ou pintar um quadro é necessário bocejar, espreguiçar-se, andar à toa, olhar o céu e as estrelas e despojar-se de toda a ansiedade que caracteriza a vida moderna.
Acreditei nisso, ao ponto de assistir o Programa Silvio Santos, passar tardes inteiras no parque do Ibirapuera, acompanhar desfiles nos corredores dos shoppings e tomar cafezinho nos bares à porta de academias. Só não tive coragem de frequentar os cinemas de filmes pornô da avenida São João e transversais, pois aí seria baixaria por demais.
Já me surpreendi nas calçadas da 25 de Março, mesmo não querendo nem tendo absolutamente nada para comprar. Queria apenas ver in loco e em cores o que é que esta rua tem. Estendi os passos até a praça da Concórdia, no Brás, e fiz questão de ir à portaria do Hotel Cavaleiro, na rua do mesmo nome, só pra conferir o quarto em que dormi dois ou três dias ao chegar do Nordeste há 50 anos com vinte cruzeiros. Surpresa: o hotel ainda existe. De lá fui resgatado pelo amigo Caio Gracco Prado, que gentilmente me hospedou em sua própria casa até conseguir emprego na Editora Abril. Chegara do Nordeste numa Kombi, espécie de pau-de-arara sofisticado, que demorara uma semana entre Caruaru (PE) e o Brás, com dez pequenos comerciantes que vinham comprar jeans, então em moda no Agreste pernambucano.
Em busca de novidades para o ócio frequentei todos ou quase todos os parques, teatros, praias, cidades, tudo enfim que enleva e distrai. Fui certa vez ao topo do Word Trade Center, de saudosa memória, só para avistar lá embaixo, bem pequenininha. a Estátua da Liberdade. Outro dia, faz tempo, me surpreendi em Oxford Street, abestalhado com tantas diferenças de raças, trajes e trejeitos.
Nada disso adiantou. Tampouco os cursos de criatividade ministrados por escritores, jornalistas, faculdades e os vários livros a respeito que devorei, aproveitando a tal ociosidade. Donde se conclui que a ociosidade não estimula a criatividade, algo que ninguém ensina e ninguém aprende.
Dizem, finalmente, que só com muito suor se cria alguma coisa. Mesmo assim, o calor dos últimos dias não confirmou nada até agora. Quem sabe uma sauna resolva esse problema por enquanto insolúvel.

terça-feira, 8 de abril de 2014

OS 30 DIAS MAIS INESQUECÍVEIS DE 1964


No dia 31 de março de 1964 eu era repórter do jornal Última Hora/Nordeste e assessor de imprensa da prefeitura do Recife. O jornal apoiava o governador Miguel Arraes e o prefeito Pelópidas Silveira e eu me alinhava conscientemente nas diretrizes vigentes, fazendo a ponte entre as autoridades constituídas e a imprensa. À noite, o jornal foi cercado e invadido por um grupo de militares do Exército, que inicialmente pretendia prender todos os jornalistas mas, após negociação, concordou em levar apenas os chefes da redação e de reportagem, soltos tão logo esclarecido que não tinham vínculos com partidos políticos.
Antes de ser assessor de imprensa da prefeitura eu era setorista na Câmara Municipal, conhecendo todos os projetos de interesse do município e obviamente todos os vereadores, com quem conversava e entrevistava diariamente. 
Nos dias que se seguiram ao fechamento do jornal passei a frequentar a Associação de Imprensa de Pernambuco, na avenida Dantas Barreto, onde me supunha seguro, embora soubesse que jornalistas de todas as tendências também andavam por ali. A AIP dispunha de ótimo restaurante, para onde acorriam também intelectuais e artistas. Além disso, havia uma sala de bilhar e sinuca, ambiente de agradável convivência. Passava as tardes jogando com o amigo e colega Claudio Tavares e paquerando a filha dele, Eva, secretária da AIP. 
Certa tarde, comecinho da noite, ao sair do prédio e me dirigir ao parque 13 de Maio para encontrar outra namorada, fui seguido sem perceber por um jeep do Dops, quando alguém bateu no meu ombro e lascou  o tradicional "teje preso"!
Ao lado dos policiais encontrava-se o vereador José Silvestre, vingando-se do perigoso jornalista que denunciara esquema de corrupção. A Câmara Municipal destinava cerca de 5 mil cruzeiros para cada vereador gastar a seu bel-prazer. O próprio vereador fizera a denúncia e por causa de sua repercussão passou a ser odiado pelos demais. Com o golpe, passou a auxiliar a polícia no meu encalço e fez questão de me entregar pessoalmente ao temido delegado do DOPS, Álvaro da Costa Lima. 
Fiquei alguns dias num banco de madeira, lado a lado com outros presos, dormindo sentado. Depois fui transferido para um pequeno xadrez, de mais ou menos 4m2, conhecido como buque, que dividia com vários outros presos. Dormíamos no chão. A comida era uma marmita insuportável. Por isso, chegava a receber até três almoços, dois das namoradas e um de minha irmã Conceição. Dividia com os companheiros, claro.
Trinta dias depois fui chamado para um interrogatório em que as principais acusações eram pertencer à Associação dos Amigos  da União Soviética, ter ido a Cuba a convite de Francisco Julião e ser comunista, naturalmente. Como prova de minha perigosa atuação mostraram-me fotos de uma entrevista coletiva do governador Miguel Arraes no Salão Nobre do Campo das Princesas. Eu estava entre os entrevistadores. Em outra foto, eu aparecia ao lado de Caio Prado Júnior na Plaza de la Revolución José Marti, Havana.  
Dadas as devidas explicações fui solto com a recomendação de que não poderia me afastar de minha residência, pois seria chamado novamente. Queriam a todo custo que eu declinasse os integrantes da "base" dos jornalistas do Partido Comunista Brasileiro no Recife. Os nomes eram notórios, mas eles queriam colocar-me como informante. Recusei-me, logicamente, e insisti: sou apenas um jornalista. Alguns dias depois, os jornais estamparam a relação dos jornalistas do Partidão, segundo outro depoente. 
Ao deixar o buque da rua da Aurora viajei para Caruaru e de lá peguei uma Kombi com onze pessoas que iam fazer compras em São Paulo, onde moro até hoje, traumatizado pelos 30 dias mais inesquecíveis de minha vida.