segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

MÉDICOS E LITERATURA (I)

A exposição sobre a vida e a obra de Gilberto Freyre na Estação da Luz, no mesmo espaço em que se encontra outra mostra de grande interesse sobre a Língua Portuguesa, enseja a oportunidade de discutirmos a relação entre Medicina e Literatura. É que na imensa obra do escritor pernambucano, autor de mais de 80 livros, há um trabalho muito especial sobre “Médicos, Doentes e Contextos Sociais”, publicado pela Editora Globo em 1983, mas ainda hoje de grande valia para quem estuda o assunto.
A edição italiana foi considerada pela crítica européia como “obra pioneira, em língua neolatina, a abordar sistematicamente o assunto complexo que é, do ponto de vista sociológico, o relacionamento médico-doente”, segundo se lê no prefácio de 28 páginas, escrito pelo próprio Gilberto em 1980.
Pouco antes de morrer, o escritor esteve internado alguns dias no Instituto do Coração, da Faculdade de Medicina da USP, onde eu era assessor de imprensa. Apesar da curiosidade natural, pela importância da personalidade internada e pelo fato de ser também do mesmo Estado, não pude especular sobre seu estado de saúde, já que havia determinação familiar em torno do seu caráter sigiloso. No fundo, o escritor tivera uma vida saudável e enfrentava as questões habituais concernentes à idade. Ponto final. Tanto é que só morreria anos depois no Recife, quando os médicos e a família se convenceram da inutilidade de buscar recursos em outros Estados.
A cidade do Recife já era um pólo médico de grande importância, não se recomendando essa busca desesperada em torno de avanços científicos.
O que chamava a atenção era a extraordinária capacidade do escritor, cuja obra é reconhecida no Brasil e fora dele. Gilberto Freyre, como se sabe, foi muito jovem para os Estados Unidos, mas em vez de ganhar dinheiro, como o fazem de hábito os emigrantes, aprofundou-se no estudo da sociologia, sendo depois professor das próprias universidades por onde passou como estudante.
Sua obra mais conhecida é “Casa Grande & Senzala”, considerada a mais completa descrição da sociedade brasileira, suas origens e formação. Por que o escritor resolveu estudar a sociologia da Medicina? Talvez porque soubesse da preocupação do médico pelo sofrimento da população, sem acesso a tratamento médico, o que levou muitos profissionais de Medicina a aderir ao socialismo. “Nada impede – é claro – o médico de ser socialista. O que deve ficar claro é que a Sociologia da Medicina não é, como tal, uma sociologia subordinada ao ideal e à doutrina socialista” – diz o escritor às páginas 151 do referido livro.
O que mais impressiona no trabalho do sociólogo é a densidade de suas observações, sempre balizadas em respeitáveis opiniões nacionais e internacionais. Em “Médicos, Doentes e Contextos Sociais” temos um escritor e sociólogo falando de Medicina.
De leitura mais amena, temos também os médicos que por alguma razão tornaram-se escritores, como é o caso de Ryoki Inoue, Moacyr Scliar, Pedro Nava, Roland Paraíso e dezenas de outros conhecidos ou não. O Brasil está cheio deles.
O caso de Ryoki é no mínimo curioso. Já exercia a profissão normalmente, no pronto socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo, quando resolveu dedicar-se a escrever as mais variadas histórias. Abandonou a profissão e transformou-se no único escritor brasileiro a figurar no Livro dos Recordes, como autor de mais de 1.000 livros. Não é muito conhecido nos meios intelectuais. Alguns críticos torcem o nariz para suas obras, como o fazem também com relação a Paulo Coelho.
Mas Paulo Coelho é o autor brasileiro mais conhecido no exterior e Ryoki Inoue é o único brasileiro a exibir, com orgulho, sua performance de rápido no gatilho. É mais rápido que Aguinaldo Silva, que produz uma montanha de textos por dia para as novelas da Globo.
A propósito da produtividade literária lembro o mico que paguei ao mostrar um conto ao amigo Osman Lins. Ele perguntou em quanto tempo eu havia escrito o tal conto, de cinco laudas. Respondi prontamente: num fim de expediente, entre cinco e seis da tarde. Não querendo ser grosseiro, o escritor, já com um câncer no cérebro, apenas me contou que levava um dia inteiro para escrever uma lauda.

MÉDICOS E LITERATURA (II)

A relação entre médicos e literatura oferece a qualquer estudioso um dos mais profícuos campos de estudo. Diferentemente do caso do jornalista-escritor, que foi objeto de interessante encontro no ano passado em São Paulo, o médico enfrenta situação em que o conhecimento das minúcias dificulta uma abordagem mais generalizante. Em sua eterna preocupação com causas e efeitos, nem sempre ele consegue escrever para grande público. Mais comum é o médico escrever livros e mais livros sobre sua especialidade, ou didáticos, o que o coloca na situação de um escritor superdotado, de inteligência fora do comum, mas por isso mesmo não consegue uma linguagem acessível.
Casos raros são os de Içami Tiba, autor de “Quem Ama, Educa”, que atinge milhões de leitores com suas experiências em torno de educação infantil, ou de José Knoplick, que chegou a vender 195 mil exemplares de seu “Viva Bem Com a Coluna que Você Tem”, livro de cabeceira de quem sofre da coluna. São livros de leitura simples, ao alcance de qualquer um, e que por isso mesmo se transformam em “best sellers”. Outros valem por sua precisão científica, como “Mentes Inquietas”, de Ana Beatriz B. Silva, que aborda a momentosa questão da hiperatividade.
A psiquiatria, por exigir exposições mais longas, já que suas questões são essencialmente discursivas, é talvez a especialidade médica que fornece maior quantidade de temas e respectivas variações. Apenas uma área do Instituto de Psquiatria, por exemplo - a de doenças afetivas, subdivide-se em dezenas de outras que originam livros importantes sobre depressão, esquizofrenia, ansiedade, etc. Na área de sexualidade, a Dra. Carmita Helena Najjar Abdo já lançou vários livros. Recentemente, a Dra. Stella Tavares, juntamente com seus colaboradores Pedro Paulo Porto Júnior, Pedro Luiz Mangabeira Albernaz, Márcia Carmignani e Andréa Mangabeira Albernaz, lançou o livro “Durma Bem Viva Melhor”. Os autores são do Hospital Albert Einstein. Provavelmente, eles não se consideram escritores. São grandes especialistas, que reuniram em livro suas experiências, num trabalho fundamentado, mas ao mesmo tempo acessível.
Nada obsta que sejam considerados escritores, embora no caso não se trate de um trabalho de criação, característica que se exige de um romance ou qualquer outra peça literária.
Outro médico que lançou um bom livro, recentemente, foi o professor Adib Jatene. Trata-se de “Carta a um Jovem Médico”, em que faz recomendações aos que pretendem ingressar na carreira. Mais interessante de que seus conselhos, importantes porém óbvios, pois baseados em que só deve abraçar o ofício aquele que tem amor ao próximo, é seu próprio testemunho de vida, ou seja, a trajetória de um menino que saiu dos cafundós (Xapuri-AC) e tornou-se professor titular da melhor faculdade de Medicina do país e ministro da Saúde.
Ser médico e escritor ao mesmo tempo exige capacidade intelectual e disposição física para escrever entre um trabalho e outro. Como a maioria precisa do lazer nos fins de semana, sobram os que têm gosto especial por esse tipo de atividade. Além de tudo isso, para ser médico e escritor precisa ter duplo talento.