terça-feira, 24 de agosto de 2010

RESPINGOS DO TEMPO

CENAS DA JUVENTUDE


Logo de manhã, por volta das 6 horas, nosso pequeno grupo se reunia na praça, pertinho da linha do trem. Éramos não mais que meia dúzia de meninos e meninas, cada um com seu copo com dois dedos de açúcar. Caminhávamos alguns quilômetros e chegávamos a um curral onde meia dúzia de vacas nos esperava para a ordenha.
Essa a lembrança mais carinhosa de meus 10 ou 12 anos, na minha pequena Gravatá.
Morava em frente à Cadeia Pública, onde havia uma placa de bronze com os dizeres Aqui tombou Cleto Campelo. Só muito depois, lendo a História de Gravatá, de Alberto Frederico Lins, viria saber do que se trata. Cleto Campelo fora um tenente do Exército que aderira à Coluna Prestes e partira do Recife soltando presos, com o objetivo de juntar-se a Luis Carlos Prestes. Teve êxito em Moreno e Vitória, mas tombou antes de entrar na cadeia pública de Gravatá. Diz-se que foi abatido por tiros de seus próprios homens, num tiroteio em que não se sabia quem era quem. Cleto Campelo caiu mais ou menos na frente da casa onde eu moraria alguns anos depois, e que ficava na frente da cadeia. Durante alguns anos foi o endereço de meus pais e meus sete irmãos: rua Cleto Campelo, 101.
Da janela desta casa eu espiava o desfile de meninos e meninas que se dirigiam ao ginásio. Juntava-me ao bando com a indefinível alegria da juventude. Olhava o contorno, o formato do corpo feminino e imaginava as coxas - quanto mais grossas, mais bonitas. E os seios? Não era o tamanho que impressionava, mas sua aparente consistência. Os mais lindos eram os que ameaçavam furar o tecido, de tão durinhos...
Como esquecer a doméstica que ajudava nos serviços caseiros, varrendo a casa, espanando os móveis e forrando as camas. Tomava o café da manhã e voltava para o quarto, simulando indisposição, mas na verdade esperando o momento em que ela entrava com a vassoura. Antes de terminar o trabalho, eu tentava tomar-lhe a vassoura, em movimentos bruscos que facilitavam esbarrões e resultavam em excitação mútua e inevitáveis amassos. A cena se repetia diariamente, até o dia em não havia ninguém em casa, nem minha mãe, que tinha ido comprar alguma coisa para o almoço. Foi o bastante para que tudo se consumasse, em pé mesmo, com medo de fôssemos flagrados na cama. Inesquecível.

DE ESCRIVÃO A ESCRITOR

Entrava no condomínio onde resido há 40 anos quando um dos moradores fez uma gracinha e eu retruquei em forma de rima. Lembrava-me, inconscientemente, dos tempos em que fazia sonetos para o jornal A Voz do Agreste – de Caruaru, naturalmente – e buscava sinônimos nos dicionários de rima.
Depois de demonstrar certo espanto com a minha capacidade de brincar com as palavras, na verdade um simples joguinho que costumo fazer com os netos, o vizinho confessou que embora eu não o conhecesse, ele sim, me conhecia, e sabia que eu era... escrivão.
Quis então saber como e por que ele chegara a essa conclusão e o vizinho solícito explicou ter ouvido comentários a meu respeito e sabia que eu trabalhara em jornais e revistas e também escrevia livros. Tem lógica. A diferença é que escrivão redige atos oficiais e eu rabisco o imponderável.
Viajava com um amigo para Taubaté pelo menos uma vez por mês. Ficávamos na casa dos sogros dele, longe do centro da cidade, onde ainda havia galinhas e porcos, prontos para satisfazer nossas curiosidades culinárias. Mas não é isso que quero recordar.
Estávamos em plena sexta-feira tomando um chopinho na melhor casa do gênero da terra de Monteiro Lobato, quando um cidadão se aproximou, dedo em riste, acusando-me de ter ultrapassado o carro dele na Via Dutra, em situação de perigo.
-- Não me lembro – disse-lhe, completamente à vontade, sem qualquer preocupação.
Cada vez mais irritado, o desconhecido continuou com incríveis agressões e ameaçou ir buscar uma arma, alegando que eu arriscara a vida dele e dos demais ocupantes do carro.
Outros fregueses que assistiam à cena formaram a turma do deixa disso e convenceram o potencial assassino do trânsito a sair do local.
Só no terceiro chopp me dei conta do perigo que corri, sem saber absolutamente do que se tratava. Não havia bebido antes de dirigir e estava acostumado a fazer o trajeto São Paulo-Taubaté sem qualquer risco ou provocação. Agora que caiu a ficha, quase chorei.
No baile do Intermunicipal, o mais fino clube da cidade, eu era um dos mais animados. De mesa em mesa cumprimentava os amigos e procurava a melhor companhia feminina. Em vão, pois participava de uma turma habitualmente bagunceira, mais preocupada com os desafios etílicos do que com as conquistas amorosas, normalmente limitadas a arroubos literários em forma de soneto.
A certa altura, um desses grandes amigos me chama a um canto e inicia um diálogo inesperado.
-- Foi você, não? Sim, não adianta negar, tenho certeza.
A seguir, passou a me empurrar, como que esperando uma reação. Atônito, não sabia o que fazer diante de tamanha e injusta agressividade. Como eu não reagi, o amigo começou a me esmurrar impiedosamente, obrigando-me a revidar de qualquer jeito. Como soldado recém incorporado à Aeronáutica, eu não era totalmente jejuno em matéria de briga. Tinha até algumas noções de judô, que aprendera com Murilo Rego, e estava em plena forma física, aos 20 anos. Assim, a duras penas consegui desvencilhar-me do meu agressor, levando-o ao chão e ao mesmo tempo pedindo ajuda aos demais colegas numa mesa próxima.
Contido, meu ex-amigo revelou que eu merecia uma surra, por ter informado as autoridades o nome dos comunistas da cidade.
Trinta anos depois reencontro o velho e ex-amigo, que admitiu ter cometido um erro. Sua convicção advinha do fato de eu estar no serviço militar. Logo...
Refrescando a memória: na década de 50 houve intensa perseguição aos comunistas em cada uma das cidades de Pernambuco. Caruaru, por ser a maior cidade do interior, concentrava naturalmente o maior número deles, por acaso todos meus amigos.
Eu era apenas um boêmio tímido e revoltado com as injustiças sociais. No máximo, um simpatizante de poucas convicções. Nunca esqueci o nome do meu algoz, já falecido: Rucket Ferraz.

DUQUE DE CAXIAS, 98 – CARUARU

Um dos mistérios que povoam nossa infância é a necessidade de migrar. Quem nasce no Interior, longe do rebuliço das capitais, vive esse dilema de permanecer em seu bucólico recanto ou migrar para os grandes centros, onde se esconde ou se perde nas multidões.
Alguns deixam a família e se aventuram em busca de vida melhor. Outros acompanham a família, em sagas que se repetem todos os anos no mundo inteiro.
Em meados do século passado essa migração foi maior no sentido norte-sul do Brasil. Milhões de nordestinos se instalaram no Paraná e São Paulo, acompanhando a riqueza do café e o “boom” imobiliário. Antes, ou mais ou menos paralelamente, milhares de nordestinos rumaram para a Amazônia, ora em busca de ouro ou da borracha. Em todos os casos, é forte a motivação econômica, mas outras motivações podem levar as pessoas a mudarem de cidade, Estado ou Região, como a necessidade de buscar novos patamares pessoais. Caruaru não foge à regra, na verdade comuns a todas as cidades do país, quiçá do mundo.
Há casos concretos, como o do pianista Giuseppe Mastroianni, que deixou Caruaru movido pelo sucesso. Depois de ter sido o primeiro maestro nos programas de auditório locais e do Recife, chegou a maestro da orquestra do Programa Sílvio Santos. Como pianista, ainda hoje é disputado pelos finos programas da sociedade paulistana. Todos os seus irmãos fazem sucesso em suas respectivas atividades em Fortaleza, Recife e Salvador.
O grande pintor Petrônio Santos é praticamente um desconhecido para os caruaruenses, mas no Rio chegou a ser um dos mais importantes artistas gráficos. Foi ele que acolheu e ajudou Romero de Figueiredo no Rio. No ano passado Romero expôs seus quadros em Caruaru, ao lado de Fernando Florêncio. Fernando vive em Olinda e Romero em Paulista. Quando se encontram, respiram Caruaru.
Vem à lembrança o nome de Lenildo Tabosa Pessoa, filho do educador Luís Pessoa da Silva. Editorialista do Jornal da Tarde, de São Paulo, foi um dos maiores especialistas em aviação no Brasil. Ao se aposentar, optou por morar em Itamaracá, antes de morrer tragicamente fazendo o que mais gostava: pilotando um avião. Lenira, outra filha do Dr. Luís, é uma renomada especialista em Medicina de Aviação, em São Paulo.
É público também o caso dos irmãos Torres – Luís, Inah, Jonas, Jairo, Jafé e José. Luís foi chefe do escritório de Pernambuco em Brasília, onde residiu até falecer, há poucos meses. Jonas foi diretor do Banorte em São Paulo, onde é comerciante. Jairo e Jafé vivem em Brasília e José é o único que permanece no Recife. Inah é colunista social em Petrolina.
Outro caruaruense que se mandou pra bem longe foi Horácio Silva, que dirige em Toronto um Guia Brasil-Canadá, reeditado anualmente, em sua 13ª. Edição. Sua esposa, Antonieta, criou por lá a Generous Hearts, voltada para assistência social.
Notem que nos referimos apenas e tão somente a pessoas que conhecemos, com maior ou menor grau de intimidade, cuja trajetória acompanhamos de perto. Muitos outros caruaruenses fizeram sua vida lá fora, como o jornalista Aluízio Falcão, que foi diretor artístico da rádio Eldorado (Grupo Estado) e produtor de discos da Marco Pereira, detentora de interessantes documentos da MPB. Ainda hoje Aluízo é colaborador do Caderno 2 (Variedades) de O Estado de S. Paulo, um dos maiores, senão o maior jornal do país. Quando jovem, Aluízio foi locutor. Mais tarde, foi secretário de Estado, no governo Arraes. Um de seus irmãos, Antônio Falcão, autor de crônicas e romances, tem sua literatura baseada em Caruaru, embora a família seja originalmente de Belo Jardim.
José Condé, escritor, João Condé, jornalista e Elysio Condé, médico e criador do Jornal de Letras – são três irmãos caruaruenses que se radicaram no Rio de Janeiro. Tive o privilégio de ser recebido por eles algumas vezes e fui correspondente do Jornal de Letras no Recife, quando trabalhava no jornal Última Hora. O jornal, especializado em literatura, era dirigido por Elysio.
Quem não conheceu o saudoso Luís Mendonça? Não nasceu em Caruaru, mas é como se tivesse nascido. Foi o primeiro Jesus do espetáculo de Fazenda Nova. Fez teatro em Caruaru e Recife e depois foi para o Rio de Janeiro. Casado com a atriz Ilva Niño, também do Brejo da Madre de Deus, Luís Mendonça foi um dos criadores do Movimento de Cultura Popular, saudoso movimento incentivado por Miguel Arraes de Alencar e dirigido por Germano Coelho.
Em São Paulo, levava meus filhos a um dentista e médico muito conceituado, para corrigir problemas de dentição. Era o cirurgião buco-maxilo-facial Clovis Bezerra Martins.
No Rio de Janeiro existe a Fundação Francisco Santino Filho, dedicada à pesquisa das doenças renais. Santino era irmão de José Luís e Vital Maria da Costa Lyra, também médicos, nascidos nas beiradas de Caruaru, lá pras bandas de São Caetano. Vital mora no Recife e José Luís é pediatra no Rio. Santino conquistou a amizade e a simpatia da comunidade médica e científica do Rio de Janeiro graças à dedicação aos estudos e a seus pacientes. Mas tinha um defeito: um grande coração. E morreu jovem.
Convivi com outro meio-caruaruense que secretariou vários jornais em São Paulo e depois tornou-se assessor de Raul Jungmann e funcionário do INCRA, em Brasília. Pouco antes de falecer, surpreendeu os amigos com um livro de poesia. Refiro-me a Antônio Albino Pinheiro Marinho, que nasceu em Belo Jardim e tinha vínculos familiares com Caruaru.
Os que deixaram a cidade jamais esqueceram seus clubes, suas praças ou as ruas em que viveram sua infância e juventude, bem como suas primeiras emoções.
Nascido em Gravatá, tenho por aquela cidade o maior carinho, mas minhas raízes paternas são da Serra dos Cavalos, onde surgiu a família Tiné.
Depois de ter sido sacristão de Chã Grande e Gravatá, meu pai, José Francisco Tiné (Dedé) trouxe os oito filhos para criar na terra de Vitalino, tendo sido sacristão da Igreja do Rosário.
Daqui, cada um seguiu seu rumo. Por razões que só Deus e o golpe de 1964 conhecem, virei paulistano, onde tenho dois filhos e cinco netos. Já os trouxe algumas vezes a Caruaru e a Gravatá, mas aí é outra história.
De qualquer forma, nunca esqueci a rua Duque de Caxias, 98, onde tudo começou.